Aos 83 anos, dono de uma vida dedicada à arte plástica e autor de múltiplos trabalhos que retratam a arte vidreira e a luta dos homens e mulheres que fizeram o 18 de Janeiro de 1934, mas não só, Gama Diniz mostra-se “satisfeito” pelo percurso que tem trilhado. Em entrevista à Marinha TV, o artista diz-se “desiludido” com a política, mas enaltece a liberdade de expressão que uma tela em branco lhe dá

 

É possível hoje, aos 83 anos, fazer um balanço daquilo que está para trás desta longa vida no mundo das artes?

De certo modo foi um percurso difícil e sinuoso, mas rico e cheio de satisfação.

O que é que dá mais prazer a um artista colocar numa tela? O que o leva a pintar vidreiros ou cristos, por exemplo?

Não tem nada a haver. O nu é o que maior prazer me dá.

Porque está associado à beleza feminina?

A beleza feminina é a essência do artista.

Posso concluir que poderá haver aqui ou acolá alguma, não direi frustração, mas coisas que ficaram por fazer ao longo da vida do artista que, em muitas circunstâncias, se dedicou às artes?

Não, não há. A questão da beleza, superei-a, o nu deu-me satisfação. Casei com uma mulher que era uma beleza e que tive a sorte de [ela] me servir de modelo. Durante a minha vida, foi a minha modelo preferida, e deu-me prazer.

A Helena sempre foi a sua musa inspiradora?

De certo modo, foi sempre.

Para além dos elementos femininos, temos a Nazaré muito presente, os vidreiros, os abstratos… Como é que um artista entra no mundo destes motivos, acontecem por acaso, por influência? O que leva a pintar hoje um vidreiro, e amanhã cavalos?

O que leva um artista a ser multifacetado é isso mesmo. É a capacidade que o artista tem de poder manifestar o seu gosto por tudo aquilo que tem beleza. Os cavalos têm uma beleza fantástica, no seu movimento, na sua estrutura. É um manancial extraordinário. Como o vidreiro a trabalhar, também tem beleza, e eu transmiti essa beleza nos meus trabalhos. A alma do meu trabalho está no trabalho. É o trabalho que desenvolve as maiores capacidades que o homem tem de se movimentar, e o movimento dos vidreiros é extraordinário.

O Gama Diniz é muito associado à temática dos vidreiros, isso aborrece um artista ou não, é um orgulho que se sente?

Não, hoje é um orgulho, um orgulho muito grande. Eu, se tivesse nascido na Marinha Grande, era vidreiro, não tinha outra maneira de ser outra coisa se não vidreiro. O vidreiro é para mim a alma do trabalhador e um indivíduo que procura a beleza e o trabalho e encontra esse motivo à mão, é feliz.

Se pudesse voltar atrás, o que mudaria em si?

Não vejo razão para mudar, a mudança é uma questão intrínseca que cada um sofre, e só na essência é que um homem sente a prática e o efeito das coisas. Não se pode transmitir uma beleza fora de um contexto. Eu fui, de alma e coração, um vidreiro, e dediquei ao vidro a minha vida e estou na Marinha Grande e graças a Deus. Graças a Deus ou ao diabo, tanto faz. Venha o diabo e escolha! Mas não vejo razão para mudar o meu trabalho.

Há uma fase que é a coleção do 18 de Janeiro de 1934, em que se nota que há uma grande inspiração artística, e essa foi uma fase boa, de boa produção. Essa foi uma fase marcante, de viragem, ou foi mais uma fase entre tantas outras?

Não, foi a continuação da mesma fase. É uma fase em que eu constatei que tinha-se passado na Marinha Grande uma revolução para a qual eu não sabia a existência. Passei a minha vida a procurar no Sindicato dos Vidreiros, os elementos que encontrava na parte escrita e encontrei de facto esse trabalho. Portanto, as coisas conjugam-se, está tudo bem comigo, não tenho dúvida nenhuma.

Qual é a obra, ou obras, de que um pintor aos 83 anos mais orgulho tem? É alguma em especial? As mulheres do 18 de Janeiro de 1934, por exemplo, ou O Orgasmo?

Tudo isso tem a ver com a minha essência de viver, não se pode desligar uma coisa da outra. Estou convencido que se o Sérgio Bento não estivesse aqui a ouvir, eu dizia o que é que eu sentia, mas de facto, a minha mudança não se deu, e se deu, eu não dei por isso. Hoje faço uma pintura, de certo modo, também transversal, ou seja, o abstrato está ligado a tudo. O abstrato é a abstração pura. A abstração pura, o que é que consta? É um traço e um ponto, ponto, traço e o plano. É um texto que eu gosto e que tem a ver com o Miró. A linha, o ponto e o plano. É tudo uma questão de jogar com isto, o ponto, a linha e o plano. O abstrato é o concreto, e o concreto é o abstrato.

O Gama Diniz ao longo da vida também fez muitos trabalhos por encomenda, sente orgulho nesses trabalhos também ou quando se olha para trás já há obras que…

Não, eu sinto orgulho no trabalho que fiz porque foi o que eu queria fazer. A encomenda é uma coisa boa, não vejo nada de mal com as encomendas. Até agora com a idade, vou para o fim, e no fim acontece que eu gosto mais do abstrato, porque o abstrato dá-me a possibilidade de eu ser livre, e a pintura é uma coisa que tem a ver com a liberdade. A liberdade de expressão é o máximo que a arte me pode dar, não vejo razão nenhuma para ser contra esse tipo de liberdade. A liberdade deu-me a possibilidade de eu ser mais amplo, e deu-me também o prazer de me manifestar, em relação aos artistas da Marinha Grande, o prazer que eu tenho de ser livre, e uma das pessoas que mais me acentuou esse prazer foi o Guilherme Correia.


O Guilherme Correia levou tempo a compreender-me, e quando me compreendeu, descobriu que eu era livre, e elogiou-me. Deu-me prazer ele elogiar-me porque a satisfação de ter alguém que era um inimigo e que se torna um amigo, isso é o maior prazer. O Guilherme Correia morreu com a insatisfação de não me ser dada a mim a possibilidade de eu ser livre. Quem me deu essa impossibilidade de eu ser livre, foi a Câmara. A Câmara não, a minha mentalidade. A minha mentalidade é que me arrastou para coisas para as quais eu não estava habituado. Essa realidade deu-se com a minha abertura ao Partido Comunista. Foi um erro, um erro crasso. Mas isso paga-se, paga-se porque as coisas não estão em favor, a desfavor. Há um senso, e um contrassenso, e foi um contrassenso. Porque o Partido Comunista é a aversão à arte.


Aliás, temos na própria Marinha Grande um exemplo disso. O exemplo maior é o atraso que o Partido Comunista tem em relação às questões da cultura. Tinham um vereador que era o “Surfista”. Intitulava-se “Surfista” porque ele não tinha que fazer. Deram-lhe a cultura, porque a cultura era o prazer que devia ter a arte, e nomeou uma funcionária do partido, que era uma mulher que tinha 33 anos dedicados à cultura, a cultura dela. Porque a cultura dela não se adequava à própria cultura. Isso foi o princípio do fim. É claro que o pai, alheio, passou à frente e era um homem da cultura. E o que é que está ligado a ele? É o Partido Comunista Português, e o Sindicato dos Vidreiros ou dos Metalúrgicos. E essa ligação entre o Partido e a prática artística não existe.

 

Nota-se aí algum ressentimento do Gama Diniz em relação à política, também algum desencanto. Há pouco falava-se do fim, nós nunca sabemos em rigor quando é que é o fim, mas aquilo que eu vejo, mesmo estando no fim, em teoria, ou em tese, há novos recomeços, e o Gama Diniz está numa fase de recomeço…

Não é bem um recomeço.

Recomeço ou reconquista dessa liberdade que teria perdido…

Sim, essa liberdade ganhei-a com a saída do Partido Comunista. Eu hoje sou um homem livre, sou um homem pessoalmente independente, sem partidos, e detesto o partidarismo.

Aos 83 anos, o que é que ainda lhe falta fazer? Ainda há motivação?

Não, não há. Há um cansaço, um cansaço que eu procuro transportar para a tela em doses de uma certa liberdade e vou partindo mais fortemente para esse princípio. Não vou dizer mais…

O que é que ainda podemos esperar nos próximos meses e anos relativamente a esta veia artística? Como é que é hoje olhar para uma tela em branco?

É o mesmo drama. Olhar para uma tela em branco, é olhar para um princípio sem fim, nem meios, não tem princípio nem meios. Eu, hoje tenho cansaço, mas é um cansaço próprio da idade. Eu sei que não estou muito longe do fim, marquei a data de encerramento da minha vida aos 88 anos. Estou a 4 anos, não vou viver mais, não quero.

Então aos 88, acabou?

Acabou.

Até lá, então, o que é que ainda podemos esperar?

Muitas pinturas, mas nada de especial.

Abstratos? Vamos voltar aos nus? Vamos voltar aos cristos? Vamos voltar aos rostos, aos retratos, à natureza? O que é que aí vem?

O que é que aí vem? Não sei. Nu não.

Esse capítulo está encerrado?

Está. Agora abstração.

O Gama Diniz, com os anos perdeu alguma mobilidade, é verdade, mas a cabeça continua no sítio e isso é uma grande vantagem. Qual é a vantagem de se ter 83 anos? Ganha-se da experiência, ou pelo contrário, esse cansaço não permite de alguma forma expressar na tela estes anos de experiência?

Não, não faz. O que faz é o indivíduo viver. Viver mais um dia, viver menos um dia, é pouco importante. O que importa de fato, para o artista, são as cores, o movimento. É um instinto, mas não é mais que isso. Portanto, estou no fim.

Um homem aos 83 anos, que se considera no fim, tem prazo de validade, segundo nos diz, ainda tem projetos?

Não, não tenho projetos. O meu projeto não é nenhum. É pintar, quanto muito, mas não tenho projetos.

Daqui a muitos anos, como é que gostava de ser recordado pelas novas gerações?

Não sei.

Como o homem que pintou vidreiros? Como um grande artista plástico? Um multifacetado?

Não sei.

Tem ainda muitas obras em seu poder. Qual seria o destino que o Gama gostava que as suas obras tomassem?

Não faço ideia.

De que forma olha para trás e para uma componente tão importante da vida que é a família?

A família… A família perdeu-se. O tempo levou tudo, também me levou a família.